Coziam o pão todas juntas. 

O forno que acolhia as irmãs era grande o suficiente para a labuta da minha mãe, da minha madrinha, da tia Júlia, da tia Teresa, da tia Amélia, da prima Júlia e das cunhadas. 

Cheirava a lenha e a monte o avental da minha  avó. Na época das flores reconhecia o cheiro a arçã, e a terra molhada na época das chuvas. Éramos muitos a correr pelas ruas, e poucos eram os que podiam ajudar, porque se pudessem, o campo reclamava a força dos braços já feitos. Assim eram passados os dias da cozedura fora do bairro dos Índios. De vez em quando lá íamos para a Fonte de Ordem lavar a roupa, completando as viagens que nos afastavam da terra batida do bairro do Calvário. 

Os dias de emigração separariam algumas das irmãs. Ficariam de vigia ao Calvário a minha tia Teresa e a minha tia Júlia. As outras partiriam para as Franças, tal como tinha já partido o meu tio Carlos. O tio António que vinha de Angola, iria para o Canadá. Já o meu tio Chico viria com os meus pais, para depois regressar à aldeia e anos depois juntar-se ao meu tio António no Canadá. 

No bairro que me viu crescer ( e não nascer, pois esse era o local da Rue de la Louptière)
lá nas franças, morava o meu tio Carlos e a minha madrinha. Já a minha tia Amélia, ficaria com o marido e o filho numa quinta para trabalhar na agricultura. 

As minhas idas à " ferme", onde estavam alojados, eram motivo de eufórica alegria. Quando aconteciam, eram dias de festa para mim. Ia gozar da liberdade, caçar rãs com o meu primo e atirar pedras aos perus e a todo o bicho que achássemos que merecia um corretivo projétil. Entrar em locais proibidos pelos nossos pais, tal como o enorme rio que por ali passava. Esse rio fazia muito facilmente 3 de nós! Não conseguíamos saltar de uma margem à outra! Intransponível e... perigoso! Ainda pensamos engendrar um barco para explorar, mas as ferramentas era escassas e rudimentares. As outras ( as verdadeiras) estavam guardadas das nossas curiosas mãos. 

O tempo flui como flui o rio. Regressariam ao Calvário a minha madrinha e a minha tia Amélia. O meu tio Carlos voltaria à aldeia para morar no centro. 

A jornada do Calvário ficaria reduzida aos tempos de férias. 

A minha tia Teresa passaria a morar em frente a nossa casa (em construção) no Bairro do Santo Cristo e o Calvário guardaria os que por lá ficaram. 

Com o decorrer do tempo, apareceram novos primos. 

O campo, esse, passaria a recompensar quem nele se fez duro, entregando a bonança aos que corajosamente desbravaram os tempestuosos mares de problemas. 

A minha madrinha criaria os filhos que se fizeram tenazes empreendedores, ora na agricultura, ora na política, ora no mundo empresarial, a tia Amélia com a chegada dos mais novos e a ajuda do mais velho, iniciaria a empresa que hoje seu filho gere. Todos os meus tios souberam transmitir os incontornáveis valores da luta sem tréguas ( não fossem eles Viriatos). 

O tempo levaria o meu tio Carlos, a minha Madrinha (e tia Maria) partiria também, o tio António foi embora depois da estoica luta contra a maldita doença, a tia Teresa num maldito acidente caseiro e por fim a tia Amélia partiu como sempre viveu : lutando. 

As minhas tias ainda cozem pão. 

Lá no céu esperam pacientemente por todos nós. Tenho a certeza do cheiro a pão que nos acolherá, tenho a certeza do cheiro do avental da minha avó, tenho a certeza do riso confortante do meu tio António, do vivó Porto do meu tio Carlos, das brincadeiras da minha tia Teresa, do carinho da minha Madrinha e do sorriso da minha tia Amélia. 

Descansa em paz Tia Amélia. 

20/02/2025

Comentários

Sofia Teixeira disse…
Uma despedida confiante num reencontro, algures do outro lado. Ficam as palavras belíssimas do autor do texto assim como o cheiro do pão, tão real como o sentimento. Parabéns pelo texto! Os meus sentimentos.
Duarte Braz disse…
Obrigado Sofia.

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